sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

1968 - O DISCURSO PROIBIDO DE GALBA GOMES


Do professor e odontólogo Galba Gomes, recebemos a seguinte mensagem; "Caro Eliomar, sou seu leitor diário, além de admirador pela sua postura de jornalista ético e integro. Repasso para seu conhecimento e, se for o caso, publicar em seu Blog, o discurso elaborado em 1968 que pronunciaria na concha acústica da UFC na condição de orador oficial de todos os concludentes daquele ano. Fui à época solicitado a concordar com modificações do texto original, no que não concordei residindo aí uma das razões para o cancelamento da solenidade. Todos os concludentes acabaram colando grau nas secretarias das respectivas instituições de ensino. Sombrios anos vivemos todos os brasileiros, a partir daquela impiedosa noite de 13 de dezembro de 1968. É possível algumas incongruências politicamente incorretas pois já se vão quarenta anos." Querido Galba, resolvemos publicar. E na íntegra:

O DISCURSO

Bem sinto a imensa responsabilidade que ora me pesa sobre os ombros, distinguido que fui, por livre escolha dos meus colegas formandos da Turma Professor Raimundo Girão, da Faculdade de Odontologia, para proferir o discurso de colação de grau de todos os concludentes da Universidade Federal do Ceará e suas escolas agregadas. Dificílima tarefa a de falar em nome de tantos companheiros. Ao receber a espinhosa missão, dou-me à tarefa de cumpri-la apesar de saber que ela ultrapassa as minhas possibilidades intelectuais. Realmente, nesta significativa festa de despedida, impõe-se um discurso em que predomine o conteúdo sociológico, a exigir a presença de um especialista, o que, evidentemente, não é o meu caso. Confiado, todavia, na
generosidade dos que me distinguiram para o exercício de tal missão, dou-me a transmitir o que acredito ser necessário dizer numa oportunidade ímpar como esta.

No mundo hodierno, já não existe lugar para as frases retumbantes e o derrame perfumado das flores da retórica, indispensáveis na oratória do passado, quando o mundo era menos confuso
e muito menos aflito que o nosso, e, por isso mesmo, sem as marcas profundas dos dramas econômicos, das tragédias políticas e das guerras ideológicas de nossos dias. Quero, pois, caros colegas, disseminar idéias; idéias para serem discutidas, neste imenso palco do mundo e cuja tônica suprema haverá de ser sempre o diálogo da convivência democrática. À luz dessas idéias, por uma imposição lógica dos tempos que correm, trarei, para o primeiro plano de minhas cogitações, os graves problemas que atribulam nossa contemporaneidade, exatamente a que mais somou responsabilidades nesta segunda metade do século, tais as esperanças que o
povo nela depositou.

Começarei perguntando: qual o papel, e a posição a ser assumida, por nós, profissionais de nível universitário? Respondo: ocupando um espaço de relevância na sociedade, como partícipes destacados do desenvolvimento nacional. E é, justamente, visando esse objetivo que passaremos
a exercitar nossa capacidade profissional. E, no exercício dessa capacidade, cabe-nos avaliar o sentido em que ela deve ser utilizada num país em desenvolvimento como o nosso, em favor do crescimento das suas forças produtivas e de toda a sua superestrutura, a fim de que o progresso material e o progresso intelectual ocorram e marchem simultaneamente.

Noutras palavras: para que a economia e a cultura se desenvolvam a um só tempo, com o que adquirirão forças para empreenderem uma luta racional e planejada, para a extinção da fome coletiva, do analfabetismo, da mortalidade prematura, do atraso industrial, do obsoletismo da agricultura, e demais problemas que formam o cortejo trágico do subdesenvolvimento.
Na época atual, desenvolvimento é palavra que se pronuncia, se ouve e se lê a cada instante em nosso País. Por isso mesmo devemos procurar o seu sentido verdadeiro e fugir às deturpações da sua legítima significação. Desenvolvimento, é bom que se esclareça, não significa tão somente
o mero aumento quantitativo da produção. Devemos olhar para a natureza das relações de produção, para o modo e a finalidade da apropriação dos produtos do trabalho. Só entendo desenvolvimento se capacitado a provocar transformações capazes de mudar arcaico em novo, o desumano em humano, o socialmente perverso no socialmente justo.

Sem economia humanizada e sem paz política, torna-se claro que as nossas forças produtivas continuarão entravadas e não venceremos o trágico destino de povo semicolonizado. Melhor
dito: não existirá entre nós a felicidade coletiva e muito menos a nossa independência econômica e política. É certo que tudo não há de se fazer em um só dia, na pressa, à velocidade de um salto dialético. A conjuntura universal não está em condições de suportar tal açodamento, marcada que está pelo violento choque de contradições de dois mundos ideologicamente diversos e que, ipso factum, se negam reciprocamente. Teremos de enfrentar uma luta sem distorções do seu plano reivindicante, sem perturbação do processo de mudança. Uma luta, afinal, pela progressiva transformação do velho arcabouço econômico, pelo desenvolvimento de novas forças produtivas, pela implantação de um regime social mais adequado à vida humana, numa crescente eliminação da pobreza, do analfabetismo, das deficiências de saúde e de outros fatores que aprofundam e
fazem continuar o subdesenvolvimento.

Só os obscurantistas poderão negar a existência do submundo brasileiro. E só eles se atreverão a negar a urgente necessidade de mudanças radicais em nossa infra-estrutura, em benefício mesmo da sobrevivência do Brasil como País e como Nação. Sei que a marcha da História é irreversível. Lenta ou acelerada, essa marcha é vista a cada instante, na vida dos povos. Mas nós, filhos de um país economicamente atrasado, teremos de estugar os passos da história, se não quisermos ser surpreendidos por desgraças nacionais, já que, no futuro, só os povos progressistas terão direito a um lugar ao sol.

Assim, meus caros colegas, cabe a todos os brasileiros, e muito principalmente a nós, a partir desta noite solene, detentores de um diploma de curso superior, a premente tarefa de descobrir
e apontar saídas concretas, soluções salvadoras para os angustiantes problemas do povo brasileiro. Resolver tais problemas com os nossos próprios recursos e com a nossa própria inteligência - eis o caminho certo que devemos seguir, pouco ou nada esperando dos países ditos
realizados. No processo da solução audaciosa e racional desses problemas é que nos realizaremos como pessoas humanas e como profissionais qualificados.

Bem avalio os sacrifícios que nos esperam, na edificação de uma Pátria justa. É como se estivéssemos a ouvir o imortal Castro Alves: Filhos do Novo Mundo: ergamos nós um grito
que abafe dos canhões o horríssono rugir, em frente do oceano! em frente do porvir! Não deixemos, Hebreus, que a destra dos tiranos manche a arca ideal das nossas ilusões. A herança do suor vertido em dois mil anos há de, intacta, chegar às novas gerações. Lembremo-nos, colegas, de que a nossa mestra é a Ciência. E de que cada teoria científica que surge aperfeiçoa o
homem, permitindo-lhe, dentro do grupo profissional, dentro da sociedade econômica, no mundo da nossa vida social, a natural substituição do velho pelo novo, num clima de mudança
pacífica e sem excessos.

Noutras palavras: devemos conservar o que de bom existir em nosso passado, longe da errônea concepção de substituir o velho simplesmente porque é velho. Para construirmos um novo mundo, dentro das fronteiras nacionais, não podemos nem devemos esquecer que a maior conquista dos tempos modernos é a livre expressão do pensamento. Essa liberdade pertence a todos. Ninguém ousará arrogar-se com o direito de possuí-la e desfrutá-la com exclusividade. Não esqueçamos a palavra de Rui Barbosa no fragor das tempestades políticas do seu tempo: “Nos dias de opressão, ser oposição é uma honra. A desonra é ser governo.”

Colegas: Abramos os olhos para esta dramática e desumana realidade: no Brasil, a instrução superior tornou-se possível apenas a uma parcela mínima da população -0,9%. Essa é uma das
taxas mais baixas do mundo, e nessa área apenas um número de privilegiados se permite freqüentar faculdades e universidades. Acaso poderíamos nos acomodar a essa acachapante
situação? Por que não estender a oportunidade do ensino superior a maiores parcelas de brasileiros? É claro, é patente que não poderemos adiar por muito tempo uma reforma do ensino que atenda à nossa realidade social. Essa realidade - triste drama de um país subdesenvolvido
- está a exigir o ensino gratuito, uma cultura técnica forjada e orientada por técnicos brasileiros.

Em suma: cultura técnica inspirada tão-somente nos interesses nacionais. Sobre a matéria,
vale a pena lembrar as palavras do Professor Roberto Lira, decano da Faculdade Nacional de Direito: “Carecemos, isto sim, é de material que nós mesmos fabricaremos, fazendo
cessar a técnica dos que doam os aparelhos para transfusão de sangue, mas em troca levam o nosso sangue.” Já não é admissível que, em pleno florescer da ciência, na era das grandes conquistas espaciais, ainda suportemos no Brasil, e muito especialmente no Nordeste e na Amazônia, a trágica aritmética do subdesenvolvimento, expressa em números que nos envergonham no concerto internacional, quais sejam, as assombrosas cifras da mortalidade infantil, da tuberculose, do analfabetismo e do desemprego. E o pior é que se pretende sanear os nossos males sociais simplesmente restringindo a natalidade - confissão de impotência dos
regimes nos países subcapitalistas.

Por tudo isso, todos nós - dentistas, médicos, farmacêuticos e enfermeiros; engenheiros, arquitetos e agrônomos; físicos, químicos e matemáticos; advogados, jornalistas e bibliotecários,
aqui reunidos nesta solenidade inesquecível - somos levados a meditar sobre o drama brasileiro. Este drama, que desejamos não se prolongue tempos afora, clama com premência pela presença num trabalho intensivo e planificado que nos leve a um Brasil melhor. Não exagero, caríssimos colegas. O drama social brasileiro está bem à vista. Negando-o, poderíamos cometer o erro
funesto da omissão. Ou agimos a tempo de salvar-nos, ou teremos de conformarmo-nos com a desgraça do Brasil - desgraça que se deixa francamente adivinhar - de permanecer entre as nações irremediavelmente condenadas à miséria e às humilhações do subdesenvolvimento.

Não me coloco entre os ufanistas que romantizam a nossa natureza, o nosso povo e o nosso futuro. Contudo, acaso poderia negar o potencial da nossa riqueza física e a força miraculosa da nossa inteligência? Porventura poderia eu subestimar a nossa bravura, não apenas nos campos de batalha, mas no labor sem pausa de quatro séculos para a construção de uma nacionalidade que tem vencido a geopolítica, as tempestades internacionais, as procelas internas, para surgir
e manter-se na face da Terra com uma língua única em oito milhões e meio de quilômetros quadrados e com um futuro que, a exemplo do passado e do presente, não esconderá as suas raízes bandeirantes, as raízes dos implantadores de currais, as raízes antiimperialistas que nos deram o Acre pela mão armada dos nordestinos?

Pergunto agora: será que a terra dos bandeirantes, dos vaqueiros e dos seringueiros - todos eles imortais conquistadores de desertos merece, já quase no dealbar do século XXI, na era dos computadores, da astronáutica e do transistor, o castigo e as humilhações do subdesenvolvimento? Com a natureza que nos coube e o homem férreo que o destino nos legou,
deveremos continuar entre as nações como envergonhada pátria de subnutridos e analfabetos?
Meus colegas: chegou para nós esta hora suprema, a de, com a responsabilidade de homens formados, abrirmos os olhos para o nosso futuro.

Cabe-nos a guarda de riquezas imensas e cobiçadas. O estrangeiro tem as vistas voltadas para
a Amazônia. Terra recém-saída do “Gênesis” e onde um riomar ilimitado, já cansado de espelhar florestas inexploradas e o rosto triste do homem doente e abandonado, brada por navios, cais, guindastes e bandeiras de todos os países, na troca de produtos e no fecundo contato de culturas e civilizações. Em síntese: para nós as nossas riquezas minerais, os nossos rios, as nossas cachoeiras, os nossos portos, as nossas florestas! Disse Teixeira de Freitas em página memorável: “Os detentores privilegiados deste meio continente não se organizaram nem social nem economicamente.” E por isso, segundo este ilustre brasileiro, não se abriram as estradas necessárias, não se criou um sistema de educação adequado, as populações desceram a extremos incríveis de pobreza e de saúde. A mortalidade, por seu elevado índice, ameaça o nosso futuro.
Grande parte da nossa riqueza já foi entregue a estrangeiros.

Finalmente, em face das nossas omissões, a Nação ainda não conseguiu as condições basilares de independência econômica e de autonomia política. Ponho-me prazerosamente na companhia do mestre e peço-vos aos meus colegas, ao povo brasileiro, aos dirigentes deste País: ocupemos o nosso território; mecanizemos a lavoura; asseguremos a vida atual e a futura das nossas populações rurais; humanizemos a existência dos nossos operários; e eduquemos a nossa juventude para a construção do Brasil como potência mundial. Criemos as nossas indústrias de
base. Incrementemos a nossa produção de petróleo. Desenvolvamos as nossas forças produtivas em todos os sentidos. Aumentemos o número de nossas escolas primárias, médias e superiores. Formemos bons professores. Implantemos no Brasil o ensino gratuito.

Enfim, pelo nosso desenvolvimento, asseguremos um mercado de trabalho para os que se preparam para a vida nas faculdades e universidades do País. Juremos, meus colegas, batalhar pela grandeza material do Brasil. Mas juremos também lutar contra a injustiça social, contra a revogação tácita dos direitos do homem pelos códigos e constituições ditatoriais. Fechemos nossas portas aos estrangeiros que ainda hoje cobiçam nossas riquezas, mas abramos nossos braços àqueles que, emigrando de suas pátrias, queiram trabalhar conosco, ombro a ombro, respeitando e amando nossa bandeira. E que nosso juramento não passe de mera formalidade.

A nossa geração responde pelo futuro do Brasil. Identifiquemos a nossa vida com o futuro do Brasil: nos sofrimentos, nos sonhos, nas esperanças. Dentro de alguns minutos, o destino colocará entre nós a distância física, exigida pela diversidade de nossas profissões. Mas estejamos certos de que se faz necessário um ponto de encontro, na encruzilhada de nossos caminhos. Esse ponto de encontro, vós bem o adivinhais: é o futuro do nosso País.

Galba Gomes
Orador oficial.

7 comentários:

Anônimo disse...

Discurso atualissimo esse do professor Galba Gomes. Um retrato do País na éóca que nos faz crer num fato: o Brasil ainda está devendo às nossas gerações. Parabéns pelo resgate via Blog, professor.

Anônimo disse...

Galba Gomes é Coreaú na história! Parabéns !!

João Teles de Aguiar

Célio Ferreira Facó disse...

Discurso calado, impedido, não se terá lido então a não ser à sorrelfa. Como outros tantos. Para muitos, achou-se necessário matar também os seus autores, não raro cidadãos vibrantes.

O golpe, estabelecendo-se despudoradamente, a partir de fora e de dentro do país, atropelaria a nação definitivamente no caminho do progresso. Este nunca mais se acharia direito, não se acha ainda, mesmo quando se livraram os governos da tirania fardada.

Eis o maior crime que atribuir aos protagonistas do golpe de 64: atrapalhar a República para sempre. A pretexto de nada. A serviço só do medo e da irresponsabilidade.

Marcos Vieira disse...

Fenomenal discurso calado pela atrocidade da ditadura; temos que ler para muitos...
Marcos Vieira

Anônimo disse...

Discurso que lamentavelmente ainda diz muito do Brasil atual. Conheci o Galba aina no \liceu e o reencontrei na Universidade embora em Faculdades diferentes. Felizmente mantem sua corencia.

José Passos

Anônimo disse...

Emocionante.

Luis-Sérgio Santos

Anônimo disse...

Fantastico discurso silenciado pela imora ditadura!!!

Antonio Almeida

Recife-PE