
O deputado federal Ciro Gomes publica artigo no O POVO deste sábado para falar sobre a questão da prostituição, que considera grave, e para colocar melhor o contexto de frase que disparou durante entrevista à TV Jangadeiro - "Fortaleza virou um puteiro a céu aberto", no que acabou em polêmica nacional. Confira:
O dever da indignação
"José de Alencar é um dos maiores orgulhos do Ceará. Expoente da literatura nacional e referência do Romantismo, deixou uma produção expressiva. Num de seus romances, intitulado Lucíola, de 1862, Alencar conta a história de Lúcia, por quem o personagem e narrador, Paulo, pernambucano recém-chegado ao Rio de janeiro, se apaixona. Lúcia é uma prostituta - a mais bela e requisitada da cidade. Segundo um amigo de Paulo, era "a mais alegre companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de extravagância". Com o tempo e o convívio, Paulo e Lúcia vão morar juntos, e um dia ela decide contar sua história. Seu nome verdadeiro não era Lúcia, mas Maria da Glória. Quando tinha 14 anos, seus familiares contraíram a febre amarela. Sozinha e sem dinheiro, procurou auxílio financeiro com um vizinho rico, que, em troca, tirou-lhe a virgindade. Acabou expulsa de casa e encaminhou-se para a prostituição. O dinheiro dos programas, guardava para a sua irmã casta, Ana. Maria da Glória morre de forma trágica nos braços de Paulo, depois de complicações na gravidez que matou o filho que o casal esperava.
Com muita freqüência somos condicionados pela ficção, pelas lendas, pelo folclore, pela mitologia ou pelo cinema a romantizar a prostituição, que surgiu na literatura já no épico de Gilgamesh, considerado o primeiro texto literário preservado da humanidade. Ainda que algumas felizardas tenham uma vida que as satisfaça, como no filme Uma linda mulher, interpretado por Julia Roberts, a maioria das prostitutas vive e morre na dificuldade, vítimas da gravidez indesejada, doenças venéreas, abuso sexual, violência de toda sorte. Durante a corrida do ouro no Oeste Americano, o censo contabilizava 300 prostitutas em São Francisco, Califórnia. Destas, 210 (70%) eram imigrantes chinesas, africanas e mexicanas. Após a Guerra Civil americana, o número de prostitutas negras aumentou muito - empurradas para a "vida" pela falta de uma alternativa melhor. Num livro chamado Prostitution, trafficking and traumatic stress, a psicóloga e pesquisadora americana Melissa Farley mostra que a maior parte das prostitutas têm em seu passado uma história de negligência e abuso em suas famílias, isolamento, abuso sexual (como Maria da Glória), psicológico e físico, abuso de drogas e álcool.
O livro estabelece uma relação de causa de efeito entre a violência doméstica e a prostituição. São jovens que deixam o lar onde eram subjugadas pelo pai ou pelo marido e, ao caírem na rede da prostituição, permanecem sendo subjugadas pelos cafetões que as aprisionam e pelos homens que contratam seus serviços em clubes de strip tease, casas de massagem, saunas, shows de sexo ao vivo. Da mesma forma que muitos homens casados se enxergam como proprietários de suas mulheres, os homens se enxergam como proprietários das prostitutas.
Num país feito o Brasil, o tema ganha uma conotação ainda mais grave quando se constata que algumas grandes cidades, como a Fortaleza de José de Alencar, têm se transformado em prostíbulos a céu aberto. De um lado da rua, hotéis expõem em suas recepções cartazes da campanha de combate à exploração sexual e ao turismo sexual. Do outro lado da rua, na praia, menores de idade oferecem seus serviços sexuais a turistas sem que as autoridades preocupem-se verdadeiramente com o futuro desta juventude. Existem duas formas de discutir este câncer nacional. Uma delas é criar uma ficção e tentar competir com José de Alencar, sugerindo que a mulher se prostitui por vontade própria, e conscientemente. Mais: sugerindo que todas as mulheres se prostituem de forma consciente e por vontade própria. A outra forma é manter-se com o pé na realidade e constatar que a exploração sexual deve ser enfrentada com a seriedade que o tema exige.
Calcula-se que 15% da população brasileira viva com renda inferior a um dólar por dia. Desse total, 40% são pessoas com menos de 18 anos. É a esta camada da população que devemos dedicar nossa atenção. É esta camada da sociedade que muitos políticos brasileiros sugerem estar fazendo a opção consciente pela prostituição. É uma juventude espremida pelos adultos. De um lado estão seus pais, que em vez de cobrar desempenho na escola, cobram a féria da atividade sexual. De outro, os turistas. A violência sexual que se pratica a céu aberto diz respeito à toda a sociedade. Às organizações não governamentais e aos governantes. O desafio que temos pela frente, e que deixa perplexas as pessoas de bem, é reverter este quadro. Indignar-se com ele é muito mais relevante do que se espantar com uma expressão mais dura empregada para dimensionar a tragédia.
Existe uma evidente inércia em relação ao tema, provocada talvez pela extensa lista de prioridades de um governo. É dever de todos nós trabalhar para impedir que crianças e adolescentes sejam empurradas para a prostituição como um caminho para a solução dos problemas financeiros de suas famílias. Tornam-se com isso objeto de dominação dos adultos e pais e acabam a vida como mercadoria. E aí mora um grande perigo. Todos nós nos preocupamos com os sites que nossos filhos freqüentam. Tememos que se relacionem com pedófilos. Nenhum de nós acredita que nossos filhos se relacionariam com pedófilos por vontade própria. E ainda assim tomamos os cuidados que a tecnologia oferece, como controlar a navegação, criar sistemas que impedem o acesso a sites de conteúdo pornográfico. Preocupamo-nos com o Orkut. Não há dúvida de que devemos manter firme a vigilância. Mas há uma certa incoerência, ou no mínimo egoísmo da nossa parte, se nos espantamos com falta de limites da pedofilia na Internet, e toleramos que na vizinhança de nossas casas protagonizem-se cenas igualmente assustadoras envolvendo crianças e adolescentes sem nosso poder aquisitivo. Abuso é abuso, na rede mundial de computadores ou fora dela."
Ciro Gomes
Deputado federal pelo PSB.